Como pesquisadora, ao observar as negociações, minhas análises não começam nem terminam ao passar as portas dos eventos. Vão muito além. Talvez, para alguém que busca compreender o mundo, a observação e a análise nunca param; estamos sempre vendo, sentindo, tentando decifrar e entender as coisas. Desde que deixei Bonn, sigo tentando dar sentido ao que vivi ao passar pela cidade, do espaço da conferência em que estive até o aeroporto. As memórias que eu tive não saíram de mim, me lembram do profundo momento de cruzamento entre racismo e misoginia. Um cruzamento sobre o qual se caminha todos os dias como se fosse invisível, mas que, na verdade, está diante dos nossos olhos e ignorado por muitos.
Lembro que eu fui até a loja da Haribo para comprar doces e, no caminho de volta, andei em direção à rodoviária. Sempre há muito o que ver aos arredores das estações de ônibus e trem, sempre tem muita gente por lá. Lembro de ter entrado por uma rua lateral, onde novas tubulações estavam sendo instaladas naquele local. Havia uma mulher negra caída no vão de uma porta. Seus seios pareciam cheios/fartos e ela parecia bem inquieta. Lembro de ter procurado pelo bebê. Vi um carrinho de bebê espremido também no vão da porta, uma cadeirinha de carro e sacolas plásticas cheias de coisas. Não vi nenhum bebê por lá. Eu congelei por dentro e continuei andando.
Essa imagem se somou a uma semana de momentos em que percebi pessoas ao meu redor sendo tratadas de forma diferente de como eu era tratada. Seria por eu ser estrangeira? Perguntei a mim mesma. Mas todos éramos estrangeiros. Não poderia ser a língua; todos falávamos inglês. Seria a cor?
No aeroporto, esperei na fila do check-in. Uma mulher negra estava no balcão. Ela tinha um carrinho duplo grande, com o filho pequeno à frente e o mais novo preso às costas. Observei enquanto ela seguia as instruções do atendente da companhia aérea. Ela entregou os passaportes e então tentou retirar as sacolas debaixo do carrinho — aqueles em que cabem duas crianças com menos de três anos. Lembro de que ela ‘lutava’ com uma sacola plástica, que estava presa no carrinho. Eu comecei a sentir o peito apertar. Ela puxava, e o carrinho balançava com muita força. Uma sacola plástica frágil, abarrotada. As alças!
Neste momento, eu lembrei de estar em uma fila semelhante, viajando sozinha com meu filho mais novo. Naquele momento, senti-me tão forte. A emoção veio à tona. Enquanto os três atendentes observavam, admirei a força e a compostura daquela mulher. A sacola se soltou, finalmente. Mas, então, foi preciso tirar o menino do carrinho — e o menino começou a chorar. Ele se agarrou à mãe enquanto ela tentava dobrar o carrinho que estava girando ao seu redor. Eu não aguentei. Avancei para segurar o carrinho firme para ela dobrá-lo e, quando dei um passo, o carrinho finalmente cedeu e se fechou. Voltei para o meu lugar na fila. Uma jovem atrás de mim reconheceu meu gesto com um aceno de cabeça. Eu também poderia ter desabado ali por conta daquela mãe.
Essas histórias são momentos do mundo social em que vivemos agora. O mundo dentro das negociações não opera exatamente como o mundo em que está situado — exceto quando opera. A questão racial, nas salas e corredores das reuniões, não se organiza como vi nas ruas e no aeroporto. Não se cruza visivelmente com o gênero na cultura das negociações — exceto quando se cruza. E, quando se cruza, pode ser percebida em palavras tensas ou reprimendas, quando alguém é colocado em seu lugar diante de todos. E, a portas fechadas… por meio de um olhar, uma opinião compartilhada, uma análise… nesse momento, o cruzamento pode emergir/vir à superfície e ser falado abertamente, mas como se fosse outra coisa.
Não consigo me desprender do que vi. Momentos como esses voltam, se repetem e não fazem sentido algum. O pesquisador e o observador também se ferem, porque presenciar é, de algum modo, carregar consigo a marca do dano.
Bibliografia
Aprendi a enxergar as experiências de raça junto àquelas e àqueles com quem caminho. E a dar sentido a isso com Toni Morrison — especialmente em Amada —, com Maya Angelou em Ainda assim eu me levanto, e, mais recentemente, com as canções de Frank Yamma, sobretudo Black Man e She Cried.