Pelo CAMAMAZON, tenho acompanhado a atuação do governo federal nas negociações e na preparação para a COP30, que será realizada no Brasil. Meu foco tem sido entender como o território aparece — ou não — nas estratégias brasileiras de atuação internacional. Para isso, escolhi observar, mais especificamente, a atuação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
O MPI tem se envolvido em pautas importantes dentro das negociações climáticas, como mitigação e financiamento. Mas o que me chamou a atenção foi o fato de ter eleito a transição justa como uma de suas principais agendas de incidência. Em conversas com representantes do ministério, compreendi que, junto a outros ministérios — os chamados “ministérios sociais” (Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Direitos Humanos e Cidadania, Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar) —, o MPI busca influenciar a presidência da COP30 para que a agenda de transição justa vá além da dimensão energética e abarque as transições sistêmicas necessárias para a construção de uma economia de baixo carbono que não aprofunde desigualdades e que respeite os direitos humanos, em especial os direitos territoriais.
Esses ministérios vêm articulando ações conjuntas e criaram um comitê de incidência direta junto ao Itamaraty e ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Além disso, acompanharam os debates sobre transição justa na COP29, em Baku, apresentando pontos importantes para suas pastas, com o objetivo de que sejam incorporados na posição brasileira em Belém.
Diante disso, ao participar da COP29, decidi acompanhar mais de perto essa frente de negociação, tanto para observar os rumos do debate internacional, quanto para analisar como esses ministérios têm se posicionado e atuado, especialmente o MPI.
De volta ao Brasil, e considerando a importância de ampliar o debate sobre transição justa no país, organizamos — por meio do Brasília Research Center (IREL/UnB) e do Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente (GERIMA/UFRGS) — um workshop híbrido intitulado “Transição Justa na política climática brasileira: transição para onde, justa para quem?”, realizado em 24 de abril de 2025. O objetivo foi promover o diálogo entre especialistas da academia, da sociedade civil e do governo federal, buscando qualificar a posição brasileira nas negociações climáticas, especialmente com vistas à SB62, em Bonn (junho de 2025).
O evento contou com representantes de diversos ministérios — MPI, Ministério da Igualdade Racial, Ministério das Mulheres, Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar —, além de organizações como Plataforma CIPÓ, LACLIMA, ICS e pesquisadores/as como Cristiana Losekann (UFES), Lorena Fleury (UFRGS) e Emiliano Maldonado (UFRGS). Pelo Brasília Research Center e pelo GERIMA participaram Verônica Korber Gonçalves, Jéssica Duarte, Pedro Lucas Siqueira de Oliveira e Pietra Reis.
Principais eixos debatidos
O workshop buscou ampliar a abordagem das políticas climáticas, para além da ênfase tradicional na redução de emissões. A escuta ativa dos ministérios deixou claro que se trata de um debate profundamente político e social — e não apenas técnico. Por isso, a participação ativa desses órgãos é essencial para uma abordagem mais abrangente e justa da transição.
A discussão se organizou em torno de duas perguntas principais:
- O que sua organização/instituição entende como central no debate sobre transição justa e que deve estar na mesa de negociações climáticas?
- Quais políticas públicas, ações ou boas práticas podem ajudar a ampliar essa noção de transição justa para além da dimensão energética?
A partir do diálogo, emergiram quatro eixos centrais:
- Transições sistêmicas: A transição justa precisa ser entendida como uma transformação estrutural dos modelos de desenvolvimento, e não apenas como mudança na matriz energética. Trata-se de uma reconfiguração profunda das dimensões sociais, econômicas e culturais.
- Reconhecimento dos grupos mais atingidos: É fundamental dar centralidade às populações mais vulnerabilizadas — povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, com deficiência, entre outras.
- Territórios e povos tradicionais: Os direitos territoriais devem ser garantidos e respeitados, não apenas pelo vínculo intrínseco com os territórios, mas também pelo papel estratégico que esses grupos desempenham na preservação ambiental e no enfrentamento da crise climática.
- Informação, formação e participação social: O acesso à informação, o fortalecimento de lideranças e a ampliação da participação social são indispensáveis para que a transição ocorra de forma democrática e conectada com os saberes locais.
O papel estratégico do Brasil no cenário internacional, especialmente com a realização da COP30 em Belém, também foi amplamente reconhecido. Diante da fragilidade do multilateralismo e da insuficiência dos compromissos climáticos atuais, a transição justa pode se tornar um eixo estruturante de um novo pacto global — que una ambição climática com justiça social. Para isso, o fortalecimento da participação social e a garantia dos direitos territoriais são elementos centrais.
Transição justa: o que está em jogo?
A ideia de transição justa parte do reconhecimento de que a transformação necessária para enfrentar a emergência climática não pode aprofundar desigualdades nem violar direitos. Desde sua introdução formal nas negociações internacionais — especialmente após o Acordo de Paris (2015) —, a transição justa vem sendo interpretada de diferentes formas pelos países.
Durante a COP27, foi criado o Programa de Trabalho sobre Transição Justa (JTWP), com o objetivo de discutir caminhos para cumprir as metas do Acordo de Paris com foco em equidade, abordando não só energia, mas também emprego, condições socioeconômicas e proteção social. Esse programa começou a ser implementado em 2024, com reuniões periódicas previstas. Na COP29, em Baku, pouco se avançou, mas o tema seguirá em pauta nas próximas rodadas.
Há um ponto de tensão nas negociações: os países defendem seu direito de determinar soberanamente as estratégias nacionais de transição, o que, por vezes, dificulta o avanço de compromissos mais ambiciosos. Por outro lado, cresce a pressão para que a transição justa não se limite à energia ou à realocação de trabalhadores, mas que abarque também aspectos de justiça distributiva no financiamento climático e o reconhecimento de saberes e práticas tradicionais.
Cada vez mais, o debate sobre transição justa se aproxima do campo da justiça climática, com atenção às desigualdades estruturais e interseccionais — como raça e gênero —, à distribuição de responsabilidades e à necessidade de participação de diferentes grupos sociais nos processos decisórios.
E o Brasil?
O Brasil tem buscado protagonismo nesse tema. Na primeira carta do presidente da COP30, o embaixador André Corrêa do Lago destacou o JTWP como uma das áreas prioritárias de avanço. Segundo ele, “as transições justas são fundamentais para alavancar a ação climática em direção ao desenvolvimento sustentável e abordar as desigualdades estruturais entre os países e dentro deles, inclusive em termos de gênero, raça e etnia”.
No plano interno, o país tem avançado na incorporação da transição justa em documentos estratégicos como a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), apresentada em fevereiro de 2025, além do Pacto dos Três Poderes pela Transformação Ecológica e da revisão do Plano Clima.
Como resultado do evento de abril, foi elaborado um relatório final que sistematiza as discussões e apresenta políticas e ações em curso que dialogam com a agenda da transição justa. O relatório completo pode ser acessado [aqui].
Próximos passos
Como desdobramento, estamos organizando um novo seminário, previsto para outubro, durante a Pré-COP em Brasília. Desta vez, o foco será escutar organizações e movimentos sociais brasileiros, com o objetivo de compreender como têm articulado as noções de território e transição justa a partir de suas realidades. Os ministérios foram convidados a participar — agora, para ouvir. A transição justa, afinal, só fará sentido se for construída com aqueles que vivem as transformações no cotidiano de seus territórios.