Em 28 de novembro de 2024, realizamos uma entrevista com Kimberly Silva, bióloga e ativista socioambiental, integrante da Palmares Lab, organização de “Juventudes do Norte-Nordeste criando tecnologias de justiça socioambiental e climática” que compunha a Coalizão COP das Baixadas até abril de 2025. A Kim vem sendo, desde o nosso workshop realizado em Belém (link post), um ponto focal importante para acompanharmos a movimentação da juventude de Belém para a COP30. Mas a decisão de entrevistá-la deu-se na COP29, quando assistimos uma fala sua numa sessão do Pavilhão Brasil. A forma como Kim articulou justiça climática, território e juventude foi muito inspiradora. Na entrevista, ela compartilhou o percurso que a levou até esses espaços de negociação global, detalhou o papel da juventude amazônida nesses fóruns e refletiu sobre sua presença nesses espaços. Na videochamada estávamos Hannah Hughes, Veronica Korber Gonçalves e Cristina Inoue.
Veronica: A Hannah elaborou algumas perguntas, e conforme você for reagindo, eu e a Cris vamos adicionando alguma coisa que a gente queira, pode ser? Para começar gostaríamos que você nos contasse um pouco quem você é e como é que você chegou nesse espaço de COPs.

Kim: Eu reservei esse espaço aqui para falar com vocês, considerando também que tem sido muito importante esse laço com vocês, né? Enfim, para a minha vida, assim, em geral. Eu estava conversando com o Mateus sobre o despertar para a vida acadêmica novamente, sobre as possibilidades de parceria entre a organização e também entre a coalizão (COP das Baixadas) e com vocês. Então, vocês têm meu tempo, vocês têm minha atenção, porque eu confio muito no que a gente criou, né?
Respondendo à pergunta, eu sou Kimberly, eu sou formada em Biologia, só que na faculdade eu comecei a atuar com um projeto socioambiental. Eu ingressei num coletivo de jovens de meio ambiente. Era esse nome mesmo, Coletivo de Jovens de Meio Ambiente do Pará. Esse coletivo nasceu do primeiro Fórum de Meio Ambiente que aconteceu em Brasília. Surgiram vários coletivos no Brasil inteiro e esse do Pará. Eu tive a oportunidade de integrar em 2018, e lá a gente atuava com educação ambiental. E esse coletivo também se tornou um núcleo local do Engajamundo, que foi onde eu conheci a palavra advocacy.
O Engajamundo nasceu e ficou focado no Sudeste, só que depois teve uma expansão muito forte para a região Norte, principalmente ali na região do Tapajós, com a galera de Alter do Chão, e também integrando Manaus, Belém, e uma galera de algumas cidades do Nordeste. Então, foi um momento em que eu conheci muitas pessoas que, assim como eu, tinham interesse em trabalhar com a transformação de realidade a partir de políticas públicas. A gente passava por diversos momentos de formação dentro do Engajamundo, mas também tinha a oportunidade de ocupar espaços de alto nível, porque o Engajamundo nasceu com o objetivo de ocupar espaços de alto nível, como as COPs. Então, eu acredito que desde a COP de Marrakesh, talvez, ou até outras COPs mais antigas, o Engajamundo esteve lá, com o objetivo de ser um local mais ocupado por jovens, porque naquela época, de fato, não se tinha representação juvenil, né? E não se tinha, talvez, o jeito jovem de mover algumas estruturas. Então a proposta era fazer advocacy com uma fala mais facilitada, e poder comunicar um assunto tão complicado como as negociações dos países na ONU.
E aí foi nesse momento que eu me conectei com a pauta. Muito depois – já agora em 2022, eu já integrando a Palmares, a gente teve o mesmo objetivo de levar uma delegação com uma cara nortista para esse espaço, porque a gente sabia que apesar de ter sido crescente a ocupação desse espaço por pessoas jovens, a gente sabia que essas pessoas eram predominantemente do Sudeste do Brasil ou do Norte global. A gente via uma presença muito forte do “Fridays for Future”, que é um movimento que nasce e tem muita força na Europa. Enfim, a gente também via outros continentes conseguindo adentrar mais nesse espaço. Eu vi pessoas do continente africano, pessoas do continente asiático – enquanto que no caso das pessoas do Brasil, as representatividades que tinham nesse evento eram pessoas do Sudeste.
Agora respondendo à pergunta sobre como eu, observando todos esses movimentos, tive a intenção de parar num espaço de COP. Como a minha atuação aqui na região era ligada diretamente a grandes empreendimentos que podem afetar a região, e também o que vem assediando nosso cotidiano de violência e racismo ambiental, eu sempre tive muito conectada com a pauta focada em energia. Então, no início da minha atuação, eu também trabalhei numa campanha do Greenpeace, que era contra a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Na época era a Total e a BP que queriam perfurar a Foz do Rio Amazonas, comprar blocos lá, fazendo estudos (aí foi quando se descobriu a presença dos corais da Amazônia). E aí esse assunto voltou de maneira muito emergente, para ser pautado na COP 27, que foi basicamente a COP do petróleo, e o interesse da gente era ocupar esse espaço para fazer pressão no governo estadual e no governo federal para não ter exploração. Desde então, esse tem sido um caminho que a gente percorre, desde essa COP até essa atual, de ficar pautando transição energética justa dentro desses espaços.
Na COP27 eu não consegui ir, mas na COP28, eu fui e já tinha uma atuação mais efetiva, porque, de fato, a gente estava mais integrado em diversos assuntos, inclusive já envolvendo adaptação climática e financiamento climático. Então a gente já entrou nesse espaço mais bem formado porque, para além dos nossos interesses na COP, existem as demandas que chegam encobrindo a nossa atuação. Nas COPS a gente descobriu que temas que a gente trabalha há muito tempo, que a gente chama de educação ambiental, de racismo ambiental, são pautados na ONU como adaptação climática para as cidades. E aí a gente percebeu, ‘ah, então tá, esse assunto que eu trabalho, ele é chamado assim nesse espaço. O que a gente pauta como demanda por recurso, esses recursos que nunca chegam, nas negociações isso é pautado como financiamento climático’. Então a gente percebeu que, de fato, a gente já discutia assuntos que são discutidos dentro desse espaço das Nações Unidas, mas que eles não são contextualizados da mesma forma. Então ocupar esse espaço e dizer ‘gente, nós também falamos sobre isso’, é acender uma chave para a mudança no território e dizer assim ‘olha, gente, o território é tão ‘safo’ [esperto, inteligente, sabedor] quanto os negociadores que estão na COP, né?

Então é um momento que a gente também pega todos os nossos debates, nossas contribuições, nossas produções e leva para esse espaço para descentralizar, comunicar e conseguir boas articulações para esse retorno. Porque foi um estalo tardio: as pessoas que ocupavam esse espaço de COP, elas eram muito mais bem articuladas, conseguiam muito mais financiamento, tinham muito mais contatos e oportunidades do que a gente que não acessava esse espaço, às vezes, por teimosia, por achar que ele não fazia sentido. Então, recentemente a gente tem feito muitas reflexões sobre a importância de estar nesse espaço. Ele existe, a gente indo ou não ele vai existir, esse evento ele vai chegar até aqui.
Foi na COP do Egito que foi anunciado o interesse do Brasil sediar uma COP, e Belém, que é onde eu estou, como cidade sede. Então, a COP 30 começou para a gente há dois anos atrás, quando foi anunciado. Porque desde esse momento, além de uma série de informações que a gente vem recebendo, a gente percebeu o dinheiro chegando, o recurso para fazer grandes obras, o Estado falando sobre o clima, falando sobre a economia, sobre a preservação de povos indígenas. Então foi um momento muito louco, porque a gente saiu de situação em que a gente tinha que lutar para pautar esses temas com o Governo do Estado do Pará. E agora eles estão falando sobre esses temas, como se estivesse totalmente aliado às nossas forças estratégicas, porém fazendo greenwashing! Faz dois anos que a gente está imerso nisso, esperando o evento, que pode ser um evento único, diferente de todos esses que já aconteceram nos outros países.
E foi mais ou menos assim que eu cheguei nesse espaço. Por ter uma confusão de coisas, é difícil fazer uma linha cronológica, mas é fácil também perceber como esse espaço que chegou pra mim, porque eu já estava envolvida nessa atmosfera. Mas eu também me recusava a estar nesse espaço de COP porque acreditava que o meu corpo não era pertencente àquele espaço, que eu não conseguiria estar lá por diversas barreiras, sendo uma delas a língua, a barreira financeira, a barreira de articulação – porque você está nesse espaço, você está muito ciente do que acontece nele, mas de fato a gente não sabe até chegar lá. Então, acho que esse é um pouco das coisas que integram esse caminho até a COP29, por exemplo.
Veronica. Sobre a sua experiência mais pessoal nas COPs, sobre como é que você se sentiu, você mencionou a questão do corpo, da língua… Você pode falar um pouco mais sobre isso?
Kim. Sim, a minha primeira COP eu recebi um financiamento de um programa de intercâmbio da SciencePo na França com pessoas brasileiras que são levadas para fazer intercâmbio. Eu não fiz o intercâmbio. Eu consegui ir com um saldo remanescente da delegação que eles estavam levando, por causa do interesse deles em firmar parceria com a Palmares. Se não fosse eles, também não teria ido, porque é muito difícil conseguir recursos para ir para a COP, né? Ou seja, captar recursos e entender que precisa captar para isso. Deu certo a nossa parceria e eles me levaram com financiamento completo para lá. Acho muito importante falar isso porque é importante nomear quem tem feito esses esforços de levar pessoas daqui para esse espaço. Então, a Avina também levou mais duas pessoas da nossa delegação. A ‘Saúde e Alegria’ lá do Tapajós também levou outra. E o Perifa Connection levou a Vitória, diretora do Perifa. Então, foi uma soma de muitos financiamentos externos que fizeram a nossa delegação participar da primeira COP, enquanto delegação mesmo, algo mais estruturado.
Eu acreditava que ia ser uma coisa e foi outra. O que eu acreditava que ia ser: primeiro, eu achava que ia ser um espaço super engessado e que, de fato, fosse transparente de a gente ver as negociações acontecendo. E eu já sabia que ia ser full-time, o tempo inteiro alguma coisa acontecendo, um grande volume de informações. Mas quando eu cheguei lá, eu me deparei com um grande festival, porque a primeira COP que eu participei foi na Expo City, em Dubai, então era um espaço muito grande, era um espaço muito mercantilizado, então tinham várias marcas em todos os lugares. E era tanta coisa que, de fato, eu não conseguia ver o espaço onde aconteciam as coisas. E isso me marcou muito porque as pessoas que estavam lá, que já tinham experiência de muitas COPs, elas falaram que não era assim, que se tornou assim. Então, me acendeu um alerta muito grande para o que esse espaço tinha se tornado. E, de fato, conhecer esse espaço dessa forma me fez ficar com muito medo de como seria a COP30, pra ser bem sincera, porque esse movimento já existia, né? E entender o que eu quero fazer aqui.
E essa primeira COP que eu fui, a gente estava diretamente ligada a questões municipais e estaduais. Eu não sou a pessoa que vai para COP com o objetivo de acompanhar negociações, por exemplo, porque eu considerava que o meu conhecimento era insuficiente para isso e que a língua já era uma barreira para mim. Então eu estava com um inglês muito, muito básico e confiando nas pessoas que já eram um pouco mais experientes. Nessa minha primeira COP, aconteceu uma dinâmica interna do grupo que foi muito importante: a gente tinha entre nós uma pessoa experiente, que era a Elenita Salles. Ela é colaboradora da Palmares. E nessa primeira COP, ela conseguiu estruturar a nossa agenda e nos guiar para a gente não ficar disperso. Então a gente tinha todos os painéis que a gente estava integrando, e também tinha um momento inicial toda manhã em que era definido o que era importante a gente acompanhar. Então, todo dia, 9h da manhã, a Youngo faz uma reunião com um briefing em geral, falando de como seria o dia, e aí ela sinalizava pra gente. E eu acho que esses movimentos internacionais de juventude são super importantes porque eles de fato tentam nivelar todo mundo para que não fiquemos num espaço ocioso, né? Porque se a gente não se organizar, a gente não aproveita. Falar sobre a COP também é falar um pouco disso, né? Tirar um pouco do mito que você vai chegar lá e você vai abrir uma porta e você vai conseguir sentar e entender tudo que está acontecendo. Não é, são questões muito específicas. Então eu demorei muito para me entender.
Aí eu passei 5 dias seguindo o governador do Pará e o prefeito de Belém. Eu estava preocupada com o perfil político da minha cidade, do meu estado, e como eles estavam se apresentando nesse espaço internacional. Então eu também pude compreender como que o governador opera, né, no sentido de ele sair de um painel de bioeconomia com uma camisa com o grafismo marajoara e trocar para uma roupa que ele vai se sentar com vários sheiks árabes e vender petróleo. E aí essa experiência para mim foi muito louca porque eu precisei sair da minha cidade, daqui onde o prefeito fica, que em teoria fica o governador, para ir para um outro país e ver de verdade como é que esses trâmites políticos acontecem. Eu estava muito focada em fazer essas agendas locais, mesmo que seja um espaço internacional super importante. A gente conseguiu entregar alguns documentos para eles e marcar reuniões. No caso, a gente estava com a campanha sobre adaptação climática na Ilha de Caratateua. Então, a gente teve avanços em relação à nossa campanha. Foram momentos importantes que a gente conseguiu muito contato de assessorias, que às vezes a gente não conseguiria também aqui na cidade.
E, no resto do tempo, era só andar, porque foi um espaço muito grande. Eu senti que é um espaço muito bem estruturado para a dispersão. E aquele primeiro impacto de conhecer uma cidade fora do meu país, e perceber como é uma cidade do Sul global, como é a minha cidade, né? Como é minha cidade comparando a outras cidades que eles chamam de primeiro mundo, super desenvolvidas e com muito dinheiro. Enfim, eu acho que essa é um pouco da minha primeira experiência na COP.
Veronica. Na sua apresentação no Pavilhão Brasil você falou sobre território. Você pode contar pra gente o que é um território pra você?
Kim. O que é um território? Muito complexo. Inclusive, meu user do Instagram, que é Kim do Norte, foi um papo muito engraçado que eu estava tendo com alguns amigos quando eu estava morando lá em Jari. O meu user antigo era Marapaniense, que é o nome da minha cidade, Marapanim. E aí uns amigos estavam falando assim, ‘tu tem que mudar o teu user porque tu não é mais de Marapanim, agora tu é do Jari, tu é Jarilense’. E aí eu falei, ‘não, eu não sou, sou Marapanim’. Aí eles falaram assim, ‘acho que tu é um pouco do Norte, porque tu tá em todos os lugares, tu também não é Belenense, tu também não é mais só Marapaniense, agora tu Amapaense também’. E aí eu falei assim, ‘ah, então vou mudar para Kim do Norte’. E foi quase que uma brincadeira, porque a pessoa que eu substitui no cargo é uma amiga, e a arroba dela é Bruna Amazônia. Então saiu a Bruna Amazônia e entrou a Kim do Norte, assim, mulheres muito territorialistas. E eu acho que o território é isso, né? É a identificação do lugar que tu nasce, que tu pisa, mas também é muito amplo no sentido de Amazônia, no sentido da região Norte, no sentido da cidade.
E eu acho que tem um outro conceito também que me atravessou muito, que são as pessoas que falam dos corpos-território. Assim, para além do chão da Amazônia que a gente pisa, a gente se identifica, a gente é daqui, quando o nosso corpo sai, ele viaja, é como se eu levasse ele comigo de alguma forma, onde eu estou tem uma parte da Amazônia também. E, ao mesmo tempo, me afeta, quando algo afeta a Amazônia, afeta o meu corpo, quando algo afeta o meu corpo, afeta a Amazônia também. Então, acho que tem um pouco de… eu acho que envolve um pouco da cultura. É ancestral, né? Quando a gente fala de povos tradicionais – e a gente pode pensar em um povoado indígena ou um povoado afrodescendente – que é muito difícil desvincular o nosso corpo das nossas origens. E aí eu gosto de pensar um pouco assim, acho que definir território é difícil, mas é fácil encontrar o seu território.
A gente estava viciada aí no pavilhão da Moana (Polinésia), e aí tinha galera com todos os adornos, que são coisas que a gente vê em filme da Disney, porque pra mim é uma realidade muito distante essa das saias de palha, da coroa de folhas, de tocar a concha. Eu me senti assistindo um filme da Disney, por exemplo. Mas eram pessoas que estavam transportando seu território – olha, meu território é isso, né? Nós somos isso. E conhecer também princesas africanas, né? Elas com todos os adornos e, meu Deus, isso é o território! Então eu acho que a minha fala também não seria diferente de outras pessoas que eu conheci que carregavam na sua essência o que de fato era um território.
Veronica. Kim, você pode comentar um pouco sobre o seu território, o que que é o único sobre o seu território no contexto das mudanças climáticas?
Kim. Eu estava escrevendo um texto para compartilhar com uma agência, que também fechou alguns conteúdos com a gente na COP, e aí eles me pediram um pouco desse contexto também para trazer para o texto, para ele não ficar só como um relato do que foi a COP em relação a resultados, também trazer um pouco da minha visão. E aí eu lembro de escrever da minha perspectiva enquanto uma pessoa da cidade que vai receber uma COP. Só que eu também gosto de voltar um passo atrás e lembrar que eu nasci no interior. Eu nasci em Marapanim. E quando a gente cresce no interior, a gente tem uma visão totalmente diferente de uma pessoa que cresce numa capital, embora sejam cidades pequenas na Amazônia. Belém é uma metrópole, mas, ao mesmo tempo, comparado a outras cidades que eu já conheci, ela é uma cidade pequena. Tem o fato de você conhecer muitas pessoas e elas se conhecerem, tem o fato de você conseguir conhecer bastante o entorno da cidade, e quando você é do interior, isso é ampliado mais ainda.

Então, eu cresci também com uma relação muito forte com a terra, porque a minha mãe, ela vem da roça. E a família, por parte do meu pai também, vem desse contexto de roça. Então, todos eles tinham muito conhecimento sobre a terra, também passavam muito pra gente. Toda a nossa geração cresceu brincando na terra. Enfim, conhecendo todas as espécies, vivendo… Tendo uma vida muito saudável. E aí, quando eu vim pra cidade, eu sofri um impacto que é uma pessoa do interior que sofre o impacto de vir pra cidade. Então, tem as coisas mais… um pouquinho mais desvinculadas da terra, uma coisa mais ‘trabalho’, enfim, eu vim para estudar, né, então tinha uma pressão nesse lugar. E aí, como que a gente se reconecta também com esse ecossistema macro, assim, de conseguir pensar e falar que as pessoas de fato são amazônidas? Porque eu lembro que em 2012, em 2013, as pessoas não se reconheciam enquanto pessoas amazônidas, aqui em Belém. Elas não entendiam que Belém, mesmo sendo uma metrópole, era a Amazônia. Então, eles acreditavam que estavam aqui na cidade, e aí quando eles saíam de Belém e entravam no meio do mato, isso era a Amazônia. Mas que na cidade não era a Amazônia. Então, eu acho que a arte tem ajudado a fazer essa junção, fez com que as pessoas de fato conseguissem enxergar a cidade também como a cidade amazônica. E aí eu gosto muito de falar sobre isso porque tem sido a arte que tem também remediado os problemas de mudanças climáticas, tem trazido para o contexto da realidade e tem conseguido promover diálogos na cidade.
Então, o que eu acho que o meu território tem de único? Eu diria que a cultura local, a cultura paraense em específico e aí a cultura amazonense, cada cultura de cada estado, mas que juntas criam as Amazônias. As Amazônias que são diferentes, mas ao mesmo tempo que são muito parecidas por conta de como as pessoas são, como que elas carregam, como elas carregam suas origens, como elas transpassam isso para as gerações. E eu acho isso muito doido, porque para mim não era fácil enxergar, até conhecer outras pessoas de fora, de outros ecossistemas e como elas nos olham. E aí teve uma vez que eu estava aqui em casa, e eu recebi a visita de uma amiga que não era do território amazônico, nem da região Norte. Ela falou ‘ eu acho muito incrível como vocês conservam a cultura indígena de ir tomar banho no Igarapé, né? Tomar banho no Rio.’ Aí eu perguntei ‘mas não é todo mundo que vai tomar banho no rio, sempre que pode?’ Aí ela falou ‘É, quando vocês têm acesso, e aqui vocês têm muito acesso e vocês continuam indo, né? Os rios estão saudáveis.’ Essa prática, ela é indígena, do banho pós-almoço. É um costume amazônico, fazer círculos em roda de noite e contar histórias de terror, histórias de visagens, que são essas aparições da mata, que são aparições paranormais, o costume do banho excessivo, várias coisas. Então, a gente percebe que são heranças dos nossos povos indígenas, dos povos afrodescendentes que também aqui ocuparam.
As pessoas ribeirinhas sobrevivem também da venda do peixe, da subsistência, da medicina tradicional. Então, quando a mudança climática afeta a nossa floresta, ela leva a nossa farmácia. Quando a mudança climática afeta nossas espécies, ela leva o nosso estoque de comida. E aí é muito doido pensar: a partir dessa ótica que vem se construindo, a ameaça é a mudança climática, mas antes do guarda-chuva clima, o culpado disso era o agronegócio – e continua sendo! Então, eu também não gosto de mudar os termos, porque há anos quem vem loteando a Amazônia é o agronegócio para plantar soja, para produzir gado. Antes de ser um problema que estava muito quente em São Felix do Xingu, já tinha mais gado do que pessoas na cidade. Então essa conexão é muito importante de se fazer, porque na época que ninguém falava de clima e que ninguém acreditava que o clima de fato estava mudando, até acontecer vários eventos extremos, era o agronegócio o responsável pelo que estava acontecendo. Quando aconteceu um crime em 2018, que foi o círculo do fogo em Altamira, São Félix do Xingu e mais um outro município, que ao mesmo tempo surgiram mais de 19 focos de incêndios juntos e todos eles circundavam uma área que depois ia ser loteada para colocar gado. Ninguém falava de clima. A gente falava sobre crimes de terra mesmo, sobre como o latifúndio tem afetado o corpo de mulheres, principalmente. Tem tirado as terras indígenas dos povos indígenas. E aí, para falar de território, também é preciso falar do contexto político dessa região. E o nosso contexto é marcado por tirar nossas terras.
Veronica. Como você descreve o território da COP? E o que, desse território da COP, te chamou mais a atenção, te marcou mais?
Kim. É que o território da COP é construído, né? Eu não sei. É tão complexo. Esse território da COP é complexo porque ele é um território móvel, né? É um território que é instalável, que ele é criado. E ele é criado por múltiplas coisas. Fazendo até um paralelo, assim, de Dubai para Baku, a gente sentiu que realmente ‘esfriou’ as coisas, assim. Então, o clima é um fator de como as pessoas vão, o que elas vão fazer ali. Eu falo isso pensando muito que aqui em Belém a COP vai ser um caldeirão. Então, a gente sabe o que acontece num caldeirão. As coisas queimam, as coisas explodem, né? E eu falo isso sobre ser muito mais frio porque eu já cheguei conhecendo vários ativistas locais, né? Que falaram com essas palavras ‘Ah, e a gente quer lutar pela água, porque está ficando escassa’. E eu chocada, perguntando ‘Como assim a gente quer?’ Porque pra mim sempre foi: meu Deus, aconteceu isso, eu vou agora imediatamente lutar por isso. Mas eu nunca tive um governo repressor nesse nível, né? Então eu pude conhecer pessoas que sequer poderiam falar sobre o que elas têm anseio em defender, por causa do governo. Isso pra mim é uma realidade muito distante, porque se falta água bem aqui agora, vai todo mundo sair dos seus prédios. A gente vai pegar tudo que é inflamável e vai queimar tudo até alguém resolver. Então, o território da COP, ele depende também do território em que ele se instala, né?
No Emirados Árabes, a gente teve alguns problemas em relação à segurança digital, eles acessaram nossos celulares, eles sabiam quem a gente era, eles sabiam pelo que a gente lutava, eles sabiam que a gente postava, eles sabiam que a gente vestia. E a gente ficou com muito medo disso, é uma coisa que se refletiu em Baku. Mas em Baku eles não deixavam nem as pessoas locais falarem. E eu fiquei muito preocupada porque a green zone, que era um espaço para ser frequentado pela sociedade local de Baku, eles sequer puderam acessar. Foi feriado, inclusive. Fizeram isso pela maior mobilidade da cidade. E o mesmo já está acontecendo aqui agora em Belém. Saiu o calendário escolar do ano que vem e aí saiu com férias nesse período da COP. E aí o meu marido falou assim, ‘ah, é para as pessoas não usarem o transporte, para facilitar as pessoas que vão para o espaço da COP.’ Aí eu falei assim, ‘tu já viu isso acontecer? Nunca acontece! Se eles dão feriado, que é pra ninguém ir pra rua porque vai acontecer o evento, vai todo mundo pra rua pra ver o evento!’ Se tu dá feriado pra gente ficar em casa, todo mundo vai pra rua porque é o momento de descansar, é calor, todo mundo quer beber cerveja, todo mundo quer tomar banho de rio, todo mundo quer… É uma pessoa famosa que tá lá? Bora lá ver quem ela é. Às vezes a gente nem conhece, vamos lá tirar foto com ela. Então também, esse é o nosso clima, né?
Eu fico pensando sobre essa ideia que vem se difundindo de que essa é a COP da participação social, a COP30. Mas a gente não coloca a participação social como um mecanismo de poder de decisão, e sim só de participação. E participar por participar. Tem crescido isso na COP, mas daí os resultados não foram agradáveis a tudo que a sociedade civil pediu.
A gente vai entender melhor quando isso de fato acontecer se esse território realmente é um reflexo do território onde ele se instala ou se ele de fato ainda continua sendo engessado e frio, né? Eu acho que vai ser muito diferente, né? E é isso, eu considero o território da COP esse território, ele é móvel, ele depende de outro território, que ele tem diversidade étnica, mas é que ele é influenciado onde ele se instala. Eu acho que eu consegui ter essa visão a partir só dessas duas COPs que eu participei.
Mas eu conheci muita gente de muitos lugares. E eles também trazem algumas perspectivas nesse sentido. Por exemplo, quando eles pautaram a COP do Egito, que era para ser a COP de África e foi uma COP, tipo, num resort, financiada pela Coca-Cola, né? A gente sabe que ali foi uma instalação, por exemplo. E se fosse instalado realmente num outro território, num território que inspirasse a ancestralidade, que fosse um território sagrado, que fosse um território que tivesse ter respeito pelas pessoas e pelas coisas, não só mercantilizado? Seria diferente? Será que hoje a gente teria uma COP diferente, teríamos instalações diferentes? Eu acho que são coisas que a gente também pode se questionar.
Veronica. Por que você quis ir para a COP29?
Kim. Eu não queria ir. Eu falei, eu não vou nada porque eu estou cansada. Eu tenho um fórum para organizar aqui que nem sei se vai conseguir dar certo agora no início do mês. E a gente com vários impasses financeiros internos, né? Mas a Vitória, minha diretora, falou: ‘você tem que ir porque ano que vem você vai receber esse evento na sua casa. E você tem que ir lá para já falar para as pessoas que você vai recebê-las, que a gente vai estar lá. E que o que elas precisarem, a gente vai conseguir articular junto’. Aí a gente volta a falar do porquê, né? Do porquê de ir nesse espaço, do porquê de atuar nisso, do porquê de trabalhar. Que é uma coisa que, quase que um mantra, do lado daqui do Norte, é que se você não for, vai outra pessoa no seu lugar, e ela vai fazer um monte de coisas que talvez não era o que você quisesse fazer. Então, ou você vai e você faz o que a gente tem que fazer, que é estar nesses lugares, com nossos copos e nossas narrativas, para fazer com que, minimamente, coisas virem a favor do que a gente tem construído aqui no território. Ou vai uma pessoa que não é alinhada com isso, e ela vai continuar colocando a gente em um lugar de subfinanciamento, colocando a gente num lugar de sub-representação e que no máximo vai dar uma oportunidade pra gente falar em um painel e depois a gente volta pra casa sem poder nenhum de articulação em um evento grande como esse.. Então, eu acho que é um pouco desse apanhado que me faz continuar indo nesse espaço, mesmo que eu ainda tenha críticas e recursos a esse espaço. É que se não for algo contínuo, não for algo bem trabalhado, que não tiver um plano, se perde. E aí todo aquele financiamento que outras organizações já botaram na gente e que a gente tem constantemente trazido pro território, porque o território, né, as pessoas que a gente se articula aqui a nível local, também esperam que a gente esteja lá e que a gente volte com coisas boas, também é um catalisador pra que a gente continue nesse espaço. Inclusive a Marcela ela até me convidou pra uma roda de conversa que vai acontecer no NAEA, e eu fiquei pensando muito, porque esses convites estão surgindo, e era o nosso interesse conseguir sentar com as pessoas e dizer, gente, foi isso que aconteceu, porque é um retorno desse apoio constante que a gente recebe, né.
Então, eu falei, ok, estou indo para Baku. Eu fiquei muito feliz que eu consegui fazer o que eu queria fazer. Quanto aos projetos, às entregas, mas também à articulação. Assim, estar com a galera da COP das Baixadas foi algo muito importante, porque de fato eu queria estar lá e me colocar como uma anfitriã, né? Não só para pessoas de outras nacionalidades, mas para pessoas do meu país, que não conhecem a gente, nos colocando como uma organização para parcerias, porque aqui não chegam tantas oportunidades quanto chegam para o Sudeste.

E aí o fato de a gente também colocar isso na mesa faz com que eles também consigam enxergar que eles estão viciados só nesse sistema. Mesmo que eles tenham boas intenções de furá-lo, eles não conseguem, porque eles não conseguem expandir. Colocar a importância de fazer uma parceria nisso é que não se repita o que aconteceu no Y20 e na COP29, né? Então a gente tem feito uma grande discussão de como que vai ser a distribuição das credenciais no ano que vem, e aí falar com organizações e falar com o governo que há a necessidade de, por exemplo, criar a credencial específica para os povos indígenas, que é um movimento que já está acontecendo a partir ali do Caucus Indígena, mas também é de como que as credenciais chegam por movimentos articulados já aqui do território que querem estar nesse espaço, não só na green zone, por exemplo, né? E tem se criado também movimentos de rebeldia, né? De que vai acontecer múltiplas COPs. Na COP das Baixadas a gente entende que é importante que a gente tenha esse espaço para divulgar, mesmo que a gente tenha tido muita dificuldade nessa COP29. A gente já teve muitos ganhos com o painel da COP das Baixadas lá no espaço. E como isso é visto também pelas outras coalizões que não conseguiram acessar esse espaço, mas que viram suas fotos lá e que viram o nome do movimento que se articula lá. Então, esse foi meu anseio de ir. Ele não era só da minha vontade, ele veio de uma cadeia de trabalho, desde as pessoas que veem a gente lá no território fazendo os materiais, fazendo as reuniões, até da minha própria organização, e acreditar em mim como uma pessoa potente para estar lá, de alguma forma.
Veronica. Na sua fala, no pavilhão, você mencionou a questão dos novos imaginários. Que tipo de futuro você quer ajudar criar?
Kim. Eu queria um futuro de participação social com poder de decisão. Esse é o que eu queria. Porque eu acho que ele garante de verdade que as grandes decisões políticas internacionais se traduzam a alguma coisa aqui a nível local, porque ainda não conseguimos. São, sei lá, 29 COPs para eu ver que, sei lá, o que está acontecendo aqui, aqui ao meu lado, é um produto de lá, sabe? Parece que tem uma grande desconexão. Então, constantemente existem esses eventos e eles acontecem e aí falar, ‘ah, então agora aqui no Brasil a gente vai se comportar dessa maneira, porque o que foi definido foi aqui, chegou esse tanto de recurso, tanto vem pra cá, tanto pra cá’. O que acontece é ano após ano um desastre ambiental pior o outro. Então o futuro que eu queria não era nem que um futuro utópico, por exemplo, que parasse de acontecer desastres ambientais. Eles vão acontecer. E as nossas cidades não estão adaptadas, não há política de perdas danos, não há política de mitigação. E o que a gente tem criado de política não é ouvida, não é levado para esses passos. E quando é levado, é só levado para mostruário, para ser expositivo, porque não tem poder de decisão. Então, tem um ciclo que está quebrado em algum lugar. E eu acho que onde se resolve é quando colocam a gente lá para, de fato, definir alguma coisa. Ao mesmo tempo que isso pode parecer muito utópico para quem acompanha negociações e que eles acham que é muito mais fácil continuar fazendo isso que vai ter efeito surtido no território. Mas é isso, nunca surtiu.
Então, em um desses dois ciclos que eu acredito ou que quem cria esse sistema acredita, há uma quebra. Eu já me tiro desse lugar de que eu vou resolver alguma coisa. Eu falo para a galera, ‘a gente não vai resolver nada porque eles não estão deixando a gente resolver nada’. Então a gente tem criado mecanismos para que de fato a gente esteja tão próximo deles no sentido de influenciar. Mas eles estão deixando a gente influenciar? Essa é uma grande pergunta porque quando teve a conversa e nem chegou a ter, né, sobre transição energética, que falaram, ah, não vai dar tempo. Vamos continuar explorando esse petróleo mais esse ano, pra ver se muda até ano que vem. E não vai mudar. Eles falam com todas as letras, eles deixam exposto que eles não estão interessados em fazer a transição. O país que sobrevive do petróleo não quer deixar de sobreviver do petróleo. Pelo contrário, quer perfurar em todos os lugares.
Essa é uma coisa que me pega muito e que é o que eu quero pro meu futuro, é que clima não seja o guarda-chuva pra discutir problemas geopolíticos, pra discutir exploração, né? Porque é isso que também tem acontecido. Explora, desmata tudo, deixa um buraco terra, chove, acaba com tudo e fala, ‘olha aí chuva, derrubou tudo’. ‘Não, você foi lá e você cavou, né?’ A Braskem foi lá e destruiu Maceió e agora tem falado como se fosse resultado das mudanças climáticas. Isso não é clima. E eu acho que isso também tem confundido a cabeça de pessoas que emergiram nessa pauta, trazendo muita questão do básico. Então, eu acho que a gente também pode trabalhar mais capacitação com essas pessoas, falar um pouco mais sobre isso de maneira aberta, né?

Veronica. Como é esse futuro que você quer, que você imagina?
Kim. A Amazônia tem sucumbido, né? De muitas formas. O futuro que eu quero de verdade é do retorno. Do momento que a gente fala que o futuro é ancestral, por exemplo. Que é quando o Krenak conta que os meninos brincavam na água como se fossem voltar ao passado, como brincavam seus ancestrais. Como se almejassem o retorno. É um pouco disso. Recuperar o que foi perdido é muito difícil, mas não é impossível.
Eu sou do interior e eu vejo há anos a coivara acontecendo. E a coivara vem de uma palavra indígena, mas é o momento em que você desmata todo um pedaço, você queima esse pedaço inteiro, porque é ali que vai acontecer roça. Então tem que fazer isso, tem que fazer de um jeito específico, um desenho específico, para que aquilo ali seja queimado de maneira natural, saudável, para fazer a roça. Sem essa queimada não nasce a roça. E aí eu também vi esse movimento natural acontecendo, mas também, indo para o interior e voltando, vi campos e campos queimadíssimos, eu sabia que aquilo não era para plantação. Era esse tempo de, por exemplo, sair de Belém e ir para Marapanim e ver acontecendo. E quando eu voltava de Marapanim para Belém, aquilo já está tudo verde de novo, porque a gente se recupera. E esse é o futuro que eu gosto, que eu quero, de recuperação. Recentemente, saiu um vídeo sobre a quantidade de peixes mortos em Alter do Chão. Só que quando eu vi aquele vídeo, eu falei Mateus, isso aí é a água voltando. Esses peixes não são mortos porque está ficando mais seco, é porque a água está voltando. Como eu sei isso? Eu sei porque eu conheço a Amazônia. E aí eu consigo olhar fotos recentes de Alter e saber que está enchendo de novo. Eu consigo ver que a chuva que caiu agora à tarde não foi uma chuva relapsa, é a chuva de final de novembro anunciando o inverno amazônico. Eu acho que esse é o futuro de conexão com passado.
C. Acho que ressoa muito com as coisas que eu ouvi do pessoal de Abaetetuba que veio falar na Alemanha. Uma liderança comunitária, falou da dos portos da Cargill em Abaetetuba, e acho que tem muito a ver com o que você descreveu, Kim.
Hannah. Eu também cresci no interior, bem no extremo do parque nacional, e muito perto disso. Eu me senti muito, muito perto do território. Mas eu sabia que era um território muito alterado, que já era degradado. Então, eu realmente me identifico com o que você diz sobre voltar, mas também olhar para frente. Então essa esperança que tu fala de uma recuperação que tu colocou algo que também ressoa muito com como eu almejo o futuro.