A Arte de (não) negociar negociando

Do Reno ao Guamá, as águas são turbulentas para implementar o Acordo de Paris

Marcela Vecchione-Gonçalves, @marcelavecchione, marcela.vecchione@gmail.com


Acompanho as Conferências do Clima, e suas subsidiárias, desde 2009, em Copenhague. Só que desde 2019 eu não ia às Conferências. Isso se deu por razões várias: descrença, raiva, repúdio, escassez de recursos. Como alguém que prefere analisar com pincéis finos (thin) em vez de com pincéis grossos (thick) os processos de construção e tessitura da política climática, a distância de cinco anos – com uma pandemia no meio da qual parece a maioria já se esqueceu, ainda que com sua estrita relação com a devastação e degradação ambiental e a consequente emergência climática -, até que o espaço de tempo não foi mau para buscar entender como se assentou o Reset Global pós-pandêmico no jet set do clima.

O fazer do mundo (e de mundos) permeados pela emergência climática, um dos enquadramentos globais mais utilizados para contar nossas histórias do presente, ganhou mesmo tração no pós-pandemia. Os pincéis finos e a institucionalização thin do acordo vão mostrando isso. É fato. Mesmo que as guerras comerciais e bélicas stricto sensu tenham tirado um pouco a centralidade da canalização financeira desse fazer de mundo climático, os investimentos cruzados em recuperação verde da economia e na escalada bélica e tecnológica não se distanciam; muito pelo contrário. Isso pode ser constatadopelo relatório “From Economy of Occupation to Economy of Genocide, elaborado pela Relatoria Especial da ONU, Francesca Albanese.

Lançado dez dias após o término das negociações em Bonn, na Alemanha, o relatórioca disseca como uma economia de restauração, agricultura de precisão e ocupação militar e expansionista são intrinsecamente conectadas.

Membros da Sociedade Civil protestam em frente a World Conference Centrer em Bonn, sob o lema “Não há Justiça Climática sob Ocupação”.

Assim, o quadro que se pintou durante a SB62 foi ao mesmo tempo reflexo (imagem) da ecologia mundo que compõe nossas cores do agora, somado de uma sombria, embora esperada, distância moral e política das atitudes almejadas em uma conferência que discute o futuro e um enquadramento possível para implementar aquele considerado o principal pacto social global contemporâneo, qual seja, o Acordo de Paris. Pronunciamentos iniciais na discussão de agenda das negociações de Bonn, ainda nos dias 16 e 17, deixaram evidente que a questão Palestina não seria uma questão em Bonn. A razão expressa para isso era por ali ser o quartel general da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, um lugar para as soluções concertadas de âmbito técnico e, não, político. Com isso, o secretariado da UNFCCC teria que manter a neutralidade política na condução das negociações técnicas. Um posicionamento que já é político em si e por si, como o carbono que saem das grandes corporações transnacionais que dizem ser neutro (e apolítico). Em movimento contrário ao que cobraram algumas partes negociadoras, especialmente o Grupo Árabe e alguns países do grupo de Like Minded Development Countries (LMDC) e, especialmente, a constituency de não-partes, como são organizações não-governamentais e movimentos da sociedade civil, que, na realidade, são partes cada vez mais relevantes no monitoramento de processo das pré negociações e negociações, a Palestina, os orçamentos de e investimentos em guerra e suas consequências climáticas não receberam atenção na agenda técnica do clima. As comunidades epistêmicas eram diferentes – mas, nem tanto. Só que o mundo em chamas e a degradação humanas são no mesmo planeta, embora com apreços distintos a humanidades que não ocupam o mesmo lugar no sentido da urgência. Da vida e do clima.

Membros de Organizações Não-Governamentais Ambientalistas (ENGO) e da Cúpula dos Povos se manifestam na Plenária de Encerramento sobre a estreita conexão entre o genocídio em Gaza e a catástrofe climática.

Para jogar uma cor (cinza) na minha aquarela impressionista de Bonn, peguemos o pincel grosso, do qual não sou muito afeta, mas que ajuda a ter as primeiras linhas de base do quadro político de Bonn. Para tanto, vou seguir lembrando, porque às vezes é importante ser repetitiva: ainda que o secretariado tenha dito que a questão palestina não é questão climática, justo pela SB62 ser técnica, e com cada vez mais partes interessadas desenhando a linguagem desta técnica, trata-se de um evento eminentemente político. Mais que isso, a política se intensifica dia-a-dia na lógica política privatista do multistakeholderism – tendência de negociar e tratar politicamente a política pública internacional como política de acionistas e de partes interessadas. Trata-se também de um evento estético e de performance, onde as posições são marcadas e traços são deixados e articulados, para que construam alianças a fim de que definições sejam performadas e finalizadas na COP, que dessa vez quando for 30, será nos Trópicos, na floresta, na Amazônia. Uma performance a mais para novembro de 2025.

Assim, a disputa Norte-Sul esteve presente em Bonn lembrando o cenário tenso de Copenhaguen, pós crise financeira global dos sub-primes em 2008, com a terra e as florestas entrando no centro dos investimentos e compensações, e distanciando-se do futurismo otimista (fracassado pela Decisão de Capa) de Glasgow, de fim da pandemia, em 2021. Em certa medida este fracasso – da negociação com base no Acordo – foi também vitória que recuperou a mundificação da Nova Economia do Clima (New Climate Economy), lançada em 2018, na COP de Katowice, na Polônia, que consagrou o lugar das Cadeias Globais de Valor e das emissões de escopo 03 como a base da economia líquida do carbono, e de iniciativas e ações climáticas para fazer o que o Acordo “não dá conta de fazer com rapidez”. Teve isso de novo em Bonn. Sob as cores de fundo da estrutura política de poder, a disputa esteve presente desde a construção da agenda até a como itens de negociação, que não seriam diretamente negociados, entraram na negociação. Tal foi o caso da agricultura e dos sistemas agroalimentares, da energia, das florestas e do próprio financiamento, sem de fato se prover as conexões com modelos de apresentação para as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), e sua relação com os Biennial Transparency Reports (BTRs).

Em evento, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) apresenta modelo para aumento de ambição nas NDCs 3.0.

Os últimos são importantes instrumentos de monitoramento, que devem ser acertados em suas bases, para a garantia da democracia e da transparência na circulação dos Resultados de Mitigação Transferidos Internacionalmente (ITMOs). Você pode achar que essas siglas não tem nada a ver com a sua vida. Mas, elas têm. A depender da maneira que comecem a ser usadas por iniciativas de cooperação internacional, circulação global de commodities ou mesmo na forma que empresas possam continuar operando e sendo licenciadas, além de financiadas, o Acordo de Paris pode se tornar um grande veículo de

flexibilização ao contrário de ferramenta jurídica internacional para a redução das emissões globais de gases de efeito estufa. Ademais, se tudo for transformado e contado como ITMO, dificilmente chegaremos a uma transição realmente justa, a partir da imaginação de outros modelos de produção e reprodução social globais, regionais, nacionais e territoriais.

No coração da disputa em Bonn esteve não só o financiamento e o quê e como conta como mitigação, mas também a garantia à adaptação, considerando as responsabilidades históricas, porém, diferenciadas, e a transferência de tecnologia, e todas as suas co-dependências, incluindo a patenteabilidade e condicionalidades na negociação do Mecanismo de Transferência de Tecnologia e do próprio Estoque Global (Global Stocktake). Somado a esses fatores, esteve o embate mais importante da implementação do Acordo de Paris, o que se dá entre prover e mobilizar recursos, incluído na agenda de financiamento. A tênue linha entre provisão e mobilização, marcadora de uma abissal diferença nas relações políticas, econômicas e ecológicas globais, refere-se ou a ser instrumento de provisão de recursos e tecnologia na institucionalidade do acordo para garantir a distribuição e isonomia para o cumprimento das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs); ou a mobilizar recursos por plataformas, ações, inciativas e instrumentos financeiros, a médio e longo prazo, rumo a investimentos dotados da crença na rentabilidade da mitigação e da adaptação, chegando-se apenas dessa forma (pela rentabilidade) ao cumprimento dos objetivos do Acordo. Na abissal diferença residem as evidentes, embora sempre varridas para baixo do tapete no contexto da emergência climática, distinções entre financiamento e financeirização, entre compromissos de redistribuição e reparação, e concentração das ações na aposta e no risco, para garantir equilíbrio climático. Agenda última essa nem sempre condizente com a justiça climática. A justiça climática, nesse caso, não é exatamente o principal interesse dos países que deveriam ser os maiores provedores de recursos. Muito embora garantia e promoção de justiça, em todos os seus eixos, com base nos direitos humanos diferenciados por contexto e assimetria na urgência de sua promoção e garantia, sejam os pilares de qualquer convenção e tratado do Sistema ONU, incluindo aí o sistema de convenções ambientais de 1992. A emergência climática e seus impactados tem esbarrado em seus descontentes. Signatários do Acordo de Paris tem se esforçado por revisar um texto já aprovado em vários dos itens de agenda para montar os documentos de negociação para a COP 30. A sensação de que havia um revisionismo do Acordo do Clima que apertava meu coração desde 2018, confirmou-se em Bonn.

Foram abundantes as menções às Soluções Baseadas na Natureza, mobilização de financiamento em oposição aos instrumentos garantidos e concessionais, negociação e oportunidade com territórios, em vez de garantia de direitos territoriais e cumprimento do acordo por meio de sua adjudicação com financiamento e estrutura garantida para a mitigação, adaptação, perdas e danos, e eliminação (phase-out) dos combustíveis fósseis e de energias de alto impacto e risco de exploração, como as nucleares ou mesmo os biocombustíveis. Como visto pelos três itens de agenda de Bonn dedicados ao Artigo 06 (6.2, 6.4 e 6.8 – o último sobre aproximações de não-mercado), enquanto o Artigo 09, sobre financiamento, sucumbe em uma crise sem fim em que os países do Norte não querem se comprometer a prover recursos ou construir capacidades, esse mesmo Artigo 06 representa um contexto de expansão do mercado no investimento e no desenho de políticas públicas como soluções baseadas em sua prórpria natureza: de mercado. Em muitos casos, esse contexto criou elementos e artifícios de aceleração da negociação, mas sem, de fato, tomar e reforçar compromissos previstos e negociados em encontros anteriores, o que passou a ser palco político inteligentemente performado pelo Países em Desenvolvimento que Pensam Parecido (os Like Minded Developing Countries), atrasando a mesma negociação.

Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Co-facilitadores da negocociação do Artigo 06 apresentam panorama para a implementação do artigo.

Planos de Trabalho e iniciativas mandatadas de negociação, como é e foi o caso do Plano de Trabalho de Sharm-el-Sheik para Mitigação, deixaram evidente a apresentação de instrumentos de revisionismo e, não, de implementação do Acordo de Paris. Rediscutir direitos e obrigações por estratégias diversas – quase sempre de mercado e com processos tecnológicos que buscam despolitizar a disputa- me pareceu ser o maior dos movimentos incidentais em Bonn. A defesa do Acordo na COP 30 e de uma democracia nas negociações combase no multilateralismo e na defesa dos princípios do Acordo como via para pensar a própria democratização (e salvação) do Sistema ONU parecem ser questões urgentes para Belém. Tão importante quanto acelerar a implementação do Acordo é garantir que direitos sejam garantidos e não violados nesse processo. A floresta, seus habitantes e seus defensores não podem arcar com mais essa ameaça e, especialmente, não podem ser os principais e únicos provedores das oportunidades para a garantia do equilíbrio climático, quando a injustiça climática é uma realidade cotidiana. Não podemos exigir dos povos da floresta, dos campos, das águas e do Sul Global o trabalho de prover as soluções para problemas que não criaram. Também não podemos enquadrar seus direitos e seus modos de vida como oportunidade. Revisar e flexibilizar princípios do acordo, além de negociar por fora compromissos de cumprimento que não poderão ser cobrados, inclusive pelas próprias pessoas dos territórios, pode não ser um caminho seguro e transparente para a proteção e garantia da justiça climática aterrissada nas realidades territoriais.

Após não atingir conclusão para encaminhamento do texto de negociação do Plano de Trabalho de Sharm-el-Sheik para Mitigação, negociadores separam-se em grupos para chegar a consenso.

Alguns povos e comunidades já perceberam isso em seus territórios e tem construído diplomacias outras fora das alternativas infernais que vem sendo apresentadas nas negociações dos itens 6.2 e 6.4 do Artigo 06. No caminho de Baku para Belém, algumas relações terão que ser discutidas, por mais desgastante que as DRs possam ser. As águas turbulentas do banzeiro fazem parte da maré grande chegando no rio. Fingir que o banzeiro não existe não impede que o barco vá para o fundo. O barco pode até ser elétrico, ter placa solar ou ser movido por biomassa, mas a força da maré é inescapável.

Apresentação em evento paralelo (Side Event) na SB62 sobre defensores ambientais e justiça climática.