Por Veronica Korber Gonçalves e Tchella Maso
No último mês, fomos convidadas a contribuir em algumas experiências de formação envolvendo a COP30 e povos indígenas, e organizamos uma para estudantes indígenas da UnB (sobre a qual escreveremos um post específico). Isso gerou um conjunto de incomodos, como pensados na antropologia feminista, tensões, desconfortos e dúvidas que fazem parte de uma prática reflexiva do conhecimento (Haraway, 1994). A partir disso, oferecemos nesse texto uma análise do que motiva a expansão das ofertas de formação destinadas a indígenas e como essas precisam ser pensadas menos como uma tradução factível do universo “copiano” e mais uma maneira de contato e aprendizado por quem se diz “especialista” ou “representante” desse universo.
Em razão da realização da COP30 no Brasil, e mais especificamente em Belém, na Amazônia brasileira – local onde vivem atualmente mais da metade das pessoas indígenas brasileiras – há uma expectativa de que haja uma significativa participação de povos indígenas na COP. Isso se refletiu no aumento de atividades de formação, de “capacitação” sobre o regime do clima e as agendas da COP voltadas para pessoas indígenas (em especial lideranças e jovens), o que está relacionado à compreensão de que:
- o local de realização da COP importa, ou seja, que as COPs tem uma estrutura e uma lógica de funcionamento próprio, mas que o território sede acaba por se expressar, transbordar para dentro dos pavilhões. A escolha pela realização da COP em Belém reflete essa preocupação de que a floresta esteja presente na COP.
- a ampliação da participação de pessoas indígenas nas COPs é uma demanda, ou seja, não apenas os diplomatas tem lugar na COP. De fato, as COPs vem se transformando, nos últimos anos, num tipo de cúpula que reúne não apenas negociadores, mas também, cada vez mais, pessoas do mundo dos negócios – em especial os lobistas dos fósseis, como denunciado nas últimas COPs -, de organizações não governamentais, juventude, governos subnacionais. Povos indígenas têm um papel muito relevante nesse processo de ampliação dos espaços e vozes nas COPs, como explicitado, por exemplo, na conquista da criação da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP).
- a COP é um espaço de articulação que não se restringe aos espaços formais de negociação, trata-se de uma oportunidade de interação entre povos de distintas partes do globo e entre esses e outros atores internacionais. A COP se transforma em uma plataforma de promoção, reconhecimento e garantia dos direitos indígenas, do consentimento livre prévio e esclarecido e dos territórios ancestrais e suas culturas sociobiodiversas.

Em março de 2025, em diálogo com o Coletivo TYBYRA, decidimos escrever um texto – em formato de cartilha – direcionada a pessoas indígenas LGBTQIAPN+. O objetivo era explicar o que é a COP e porque pessoas LGBTQIAPN+ precisam ser incluídas na conversa. Uma reflexão iniciada em um processo colaborativo de pesquisa envolvendo construção de políticas públicas destinadas a essa população. Então, a muitas mãos, elaboramos a cartilha “Pessoas indígenas LGBTQIAPN+ e a luta por justiça climática: um lugar na mesa de negociação!” que foi lançada no Acampamento Terra Livre (ATL) em 2025.
E no fim de semana pós ATL, fomos convidadas a participar de uma atividade de formação organizada pelo Instituto Kabu para indígenas da etnia Kayapó das Terras Indígenas Baú e Menkragnoti. O convite era para que uma de nós, Veronica, tratasse de financiamento climático e a outra, Tchella, de gênero e clima.
Ambas as experiências foram bonitas e desafiadoras. Havia uma expectativa, nos dois convites, de que fôssemos facilitadoras da aproximação de pessoas indígenas com o “mundo” das COPs. Algo como que uma tradução palatável das siglas e da lógica de funcionamento das reuniões, de forma que quando as pessoas estiverem lá – ou em suas estratégias de mobilização – consigam utilizar as terminologias aceitas nesse mundo.
Mas entre o convite, o plano e a interação real, nos vimos numa tarefa maior. Porque para falar da agenda de negociação que está na mesa em 2025, é preciso tentar explicar o inexplicável, o inconformável: a distância entre a urgência do problema e a capacidade de chegar a consensos radicais e ambiciosos. Que não, não há financiamento suficiente. Que não, não há consenso sobre a eliminação urgente da exploração dos combustíveis fósseis. E que não, nem todos poderemos entrar nos pavilhões das COPs, que se entrarmos não seremos ouvidos, e que possivelmente não compreenderemos o que está sendo dito – seja porque em inglês, seja em razão da linguagem hermética do espaço, que uma formação de dois dias ou uma cartilha não é capaz de solucionar. Então, se por um lado, acreditamos e defendemos que todos temos o direito de nos envolver, por outro, cresceu o receio de que estamos criando falsas expectativas – como se bastasse entendermos um pouco mais essa linguagem para podermos entrar na festa, quando, ao que parece, quanto mais nos apropriamos dessa linguagem, mais vemos os seus limites. Essa talvez tenha sido a parte da nossa incomodidade.
Qual o sentido de “ensinar” sobre as COPs – quando o que a gente precisa é que negociadores e especialmente tomadores de decisão aprendam a ouvir essas outras vozes? Se há esforço de se apropriar e compreender o mundo das COPs, há esforço do mundo das COPs em ouvir e compreender e se transformar a partir do que dizem as vozes dos territórios?

Há um limite, portanto, entre o local de realização das COPs, agora na Amazônia, a ampliação da participação, em nossa experiência focada em pessoas indígenas, e a estrutura organizacional que orienta os ritos da negociação internacional. Não é possível comunicar o léxico “copiano” em dois dias ou algumas páginas, mas caso fosse, como esse conhecimento compartilhado incidiria na reorientação das políticas ambientais globais? Se a proporção entre mantenedores do problema e vozes de esperança são 7x desproporcionais (tomando por exemplo o número de lobistas do petróleo presentes em Dubai em comparação com a representação indígena). Como garantir que as experiências cotidianas nos territórios – de nascentes que não são mais de água pura, de chuvas intensas, secas longas, raízes que não crescem ou alimentam como antes – se transformem notícias sobre a queda do céu? Que tenham a força de produzir consensos, ampliar o financiamento e gerar medidas efetivas de mitigação e adaptação, que se revertam em melhoria de vida nas comunidades?
Diante do incômodo com as megalomaníacas estruturas de poder, o que pode uma formação ou uma cartilha?
A resposta não pode ser vazia, pois disso depende nosso sonho de futuro. Sem desconsiderar o papel das grandes estruturas sociais e políticas e lógicas de poder pré-estabelecidas, deslocamos a atenção para os coletivos que nos convidaram a participar e atuar como facilitadoras de um determinado conhecimento.
O que almejam as pessoas que nos convidaram a dar uma formação e organizar o saber “copiano” de forma mais acessível? Qual interesse delas na COP? O que as pessoas indígenas que participam dessas formações e que leem esses materiais desejam? Com quais objetivos e de que forma querem navegar a COP?

Isso pode significar, no caso de uma formação de dois dias ou de uma cartilha, deixar de lado toda a parafernália que possamos entender como “essencial” para tratar das COPs (ex. o histórico de negociações, as agendas de negociação, as siglas, e temas como financiamento climático e gênero e clima) e partir da realidade das pessoas, coletivos e suas necessidades.
Isso envolve vínculo, parceria e confiança. Pode parecer óbvio, mas certamente frustra as expectativas de quem pensa a “formação de pessoas indígenas para as COPs” como um processo de “levar conhecimento a quem não tem”, de apresentar conteúdo considerado “indispensável” para se estar nesse espaço. Compreender as estratégias políticas e de mobilização que envolvem a participação indígena nas negociações, levando em consideração aspectos como interseccionalidade e transversalidade, pode se transformar em um caminho dialógico. Levar à sério a multiplicidade de existências que cada grupo etnico carrega talvez nos exija um profundo processo de descentramento, desaprendizagem e equivocação (Viveiros de Castro) que pode tornar a tarefa de “ensinar sobre as Cops” algo mais interessante como povoar o nosso mundo, um tanto cinza, de cotidianos possíveis, adaptações reais e alternativas cotidianas para driblar um conjunto de problemas que seguem configurando as negociações sobre clima, sendo elas ou não realizadas na Amazônia.
Talvez sejamos nós o alvo da aprendizagem e não as portadoras do saber. E se a floresta falar que tenhamos ouvidos para escutar.
